A vergonha
Paulo Ghiraldelli Jr (filosofia.pro.br)
“Sou envergonhado e tímido” – há muita gente que se define desse modo. Assim, alguns passam uma vida toda perdendo oportunidades e se saindo mal em tudo. Qualquer tarefa em que precisam se colocar à dianteira, ganhando certa visibilidade, é exatamente o momento em que recuam e colocam tudo a perder. Não mudam, justamente porque para mudar teriam de tomar uma iniciativa, o que implicaria em alguma exposição insuportável. Há quem seja tão envergonhado de tudo que nem mesmo a iniciativa para tentar deixar a vergonha de lado é possível de ser tomada. O que fazer com isso?
O erro do envergonhado que não consegue deixar de ser envergonhado é que ele acredita que sua condição é natural e eterna. Como a vergonha se manifesta com reações fisiológicas (o rubor e até mesmo um desarranjo intestinal passando pelo vômito), ele se convence que tudo está tão entranhado no seu corpo que sua alma jamais poderá se libertar. Seu corpo o avisa de que ele está em uma prisão. Vê-se em um calabouço. Isso é tão forte que às vezes ele cede a Platão e imagina que é o corpo prendendo a alma, e às vezes ele pensa como Foucault e tem certeza que é a alma acorrentando o corpo. A saída dessa situação não é fácil, mas que há saída, nós sabemos que há. Muitos envergonhados ficaram sem-vergonhas, sem que tal mudança os tenha comprometido com uma vida imoral.
A chave para escapar da vergonha monstruosa está aqui: deve-se começar por identificar o que é que causa vergonha e o que é que, na vida em geral, não deve causar vergonha. Há sim aquilo que tem mesmo de causar vergonha. Mas há aquilo que se causa vergonha, nada indica senão que algo está errado – não deveria provocar vergonha. A literatura filosófica conta um episódio envolvendo Sócrates e o jovem general Alcibíades que ensina muito sobre isso tudo.
Sócrates estava em um banquete na casa de um poeta. Era um banquete seleto, para amigos. Comemoravam a vitória desse poeta em mais um festival, entre os vários que já havia participado. Durante toda a noite beberam e comeram enquanto se dedicaram a falar do amor. Cada um deles fez uma exposição sobre o amor, ou seja, Eros. Sócrates foi o último a falar. Quando terminou sua fala e iria receber os aplausos, todos escutaram um barulho no portão. Nem bem os servos da casa puderam abrir o portão e entrou o belo general Alcebíades, completamente bêbado e com uma guirlanda na cabeça. Chegou entre os presentes e foi colocando a guirlanda em um e outro, ao modo que todo bêbado chato faz em festa. Os convivas não tiveram outro modo de lidar com ele senão convidando-o a participar do ritual ali posto: que também Alcibíades falasse sobre o amor, sobre Eros. A palavra foi passada para o jovem general que, então, surpreendeu a todos ao falar não propriamente do amor e, sim, do amor dele por Sócrates.
Alcibíades contou nesse episódio como que Sócrates era grandioso em tudo que fazia. Mencionou o episódio em que o filósofo o havia resgatado no campo de batalha, enfrentando vários inimigos para abrir caminho de maneira a carregá-lo ferido para as trincheiras amigas. Lembrou que Sócrates ao voltar da campanha militar negou ter feito o que fez, negou ter sido herói e mentiu dizendo que Alcibíades é que havia se saído bem na guerra, deixando os louros recair sobre o jovem. Contou também como Sócrates havia ficado sozinho com ele, em uma noite em sua casa, onde tudo havia sido adrede preparado para que o filósofo fosse seduzido sexualmente, e que este ali permaneceu sem ceder aos seus encantos e suas investidas – uma resistência que nenhum outro havia levado adiante. Nessa preleção toda, Alcibíades lançou uma estranha comparação. Viu Sócrates como um sátiro, mais propriamente como Marsyas. Alcibíades não se aprofundou na comparação, mas para bom entendedor meia palavra basta. A história de Marsyas é significativa.
O sátiro Marsyas era aquele da lenda sobre a flauta da deusa Atena. Essa deusa havia achado uma flauta e encantou-se em tocá-la. Mas isso durou pouco, porque um dia, tocando a flauta, olhou para as águas de um lago e ficou horrorizada com a imagem de seu rosto lá refletido. O esforço para tocar a flauta fazia suas bochechas incharem e seu rosto perdia as expressões de serenidade que ela tanto amava em si mesma, e que lhe conferiam beleza – justamente a beleza apolínea, das esculturas, sinônimo da beleza em si na cultura grega. Envergonhada e enraivecida lançou a flauta longe, nunca mais se envolvendo com instrumentos de sopro. Alcibíades conhecia bem essa história, e ele costumava aplicá-la a si mesmo. Dizia não ter aprendido nenhum instrumento de sopro porque estes lhe deformavam o rosto, tirando-lhe a beleza que tanto o distinguia em Atenas. Aliás, dizia também que um povo que tem flautistas e coisas do gênero entre homens livres e não somente entre servos, era um povo brutalizado, incapaz de se elevar por meio do diálogo, usando então a boca para se enclausurar em uma situação que impedia a conversação. Marsyas foi o sátiro que achou a flauta de Atena e se transformou em exímio tocador, sempre com as bochechas inchadas. Um sátiro é suficientemente feio para não dar a mínima ao se tornar mais feio, muito menos se isso é por causa de uma flauta. Alcibíades tinha vergonha de si ao tocar a flauta e lembrava bem da vergonha que sentia quando vislumbrava a figura de Marsyas.
O interessante é que no banquete, Alcibíades termina sua preleção dizendo que a única pessoa capaz de provocá-lo, fazendo-o sentir vergonha, era Sócrates. O filósofo assim fazia sem precisar falar nada, só pela sua presença. Por isso mesmo, não se há de estar errado quem entende bem a comparação que Alcibíades fez, entre a figura feia de Sócrates e Marsyas, não pela aparência somente, mas principalmente por ambos serem porta vozes da vergonha que se manifestava nele próprio, Alcibíades. Mas por que Alcibíades tinha vergonha? Ora, porque Sócrates apostou nele como filósofo, como quem poderia ser um político, um líder militar, mas com a sabedoria de um filósofo. Alcibíades sabia ter ficado aquém disso. Mas sabia, também, que isso não o diminuía diante de outros. Ele era a grande figura de Atenas em vários sentidos. Diante de Sócrates, no entanto, a quem ele amava, havia a vergonha de não ter podido se completar como um político mais sábio, que era o que o filósofo queria que ele fosse.
A frase principal dessa história é essa última: “que o filósofo queria que ele fosse”. Aí está a causa da vergonha de Alcibíades e a única que realmente produz a vergonha: sermos descobertos como não sendo aquilo que até então parecíamos a todos os nossos admiradores, os que, por conta de uma promessa, nos viam como esperança no futuro próximo.
Como alguém pode ter vergonha se antes não despertou nenhuma expectativa ou fez qualquer promessa? Não pode. O envergonhado que mostra seu rubor diante daqueles a quem não foi prometido nada, é um falso envergonhado. Pode se conscientizar disso e jogar a vergonha fora. Nunca prometi a ninguém que iria ser campeão olímpico em natação, muito menos a mim mesmo, por isso mesmo quando entro na piscina é para nadar como sei, para me divertir, não para apresentar uma performance. Não posso ter vergonha do modo como estou nadando porque não posso ter vergonha dos que estão me olhando. Eles esperavam quem? Um super-herói? Azar deles! Não veio.
Uma boa parte de nossa vergonha desapareceria se pudéssemos entender Alcibíades. Nada e ninguém, exceto Sócrates, faziam-lhe sentir vergonha. Nisso, Alcibíades se revelou completamente normal, saudável.
Os pais deveriam entender isso e ter bom senso ao cobrar dos filhos determinadas coisas. Há o que cobrar quando alguma coisa foi estabelecida de comum acordo. Alcibíades e Sócrates tinham se tornado amante e amado em uma relação filosófica de pederastia. Alcibíades abandonou o cultivo de si mesmo e não cumpriu o que a relação exigia. Havia razão de ter vergonha, mas, assim mesmo, só em relação a Sócrates e a mais ninguém. E assim ele viveu. Mas há entre nós os que têm vergonha do que foi prometido e não cumprido em relação a tudo e todos. Essas pessoas sofrem. Ampliam a vergonha para além do que poderiam e deveriam. Uma pessoa assim acha-se devedora de dívidas que não contraiu ou que outros contraíram em seu nome, sem sua autorização. Quer pagar o que não deve e, no entanto, não pode. Sente vergonha. Perde a noção de onde vem a vergonha. Torna-se patologicamente um envergonhado.
Nas relações com nossos pais e outros que são adultos, fazemos promessas ou deixamos que as pessoas acreditem em nós. Afinal, algumas delas resolvem elas mesmas fazer promessas por nós. Não nos avisam! Os pais decidem que seus filhos deverão agir assim e assado, sem avisá-los, e quando eles não cumprem, querem que eles passem a se cobrar e se envergonhar. A vergonha nesse caso não ajuda, pois o que podem conseguir é que os filhos sintam vergonha de tudo, menos do que deveriam sentir.
Quem quer ficar sem vergonha tem de começar cedo o exercício de auto-exame, para saber no que pode prometer suas forças e comprometer seus esforços. A vergonha correta é pontual, não pode ser genérica e geral. A vergonha genérica e geral, como aquela que Adão e Eva sentiram em relação a Deus, segundo o conto moral bíblico, não faz sentido em nosso mundo. Fazia sentido para eles, o casal, uma vez que só tinham uma lei a obedecer, só tinham uma promessa a cumprir e falharam. Quando o envergonhado dá o tamanho exato da sua vergonha para si mesmo, começa a se libertar da vergonha avassaladora.
© 2013 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
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